ILYA PRIGOGINE
Escrevo esta carta na mais completa
humildade. Meu trabalho é no domínio da ciência. Não me dá qualquer
qualificação especial para falar sobre o futuro da humanidade. As moléculas
obedecem a "leis". As decisões humanas dependem das lembranças do passado
e das expectativas para o futuro. A perspectiva sob a qual vejo o problema da
transição da cultura da guerra para uma cultura de paz.– para usar a expressão
de Federico Mayor – se obscureceu nos últimos anos, mas continuo otimista.
De qualquer forma, como poderia um
homem da minha geração – nasci em 1917 – não ser otimista? Não vimos o fim de
monstros como Hitler e Stalin? Não testemunhamos a miraculosa vitória das
democracias na Segunda Guerra Mundial? No final da guerra, todos nós acreditávamos
que a História recomeçaria do zero, e os acontecimentos justificaram esse
otimismo. Os marcos da era incluem a fundação da Organização das Nações Unidas
e da Unesco, a proclamação dos direitos do homem e a descolonização. Em termos
mais gerais, houve o reconhecimento das culturas não europeias, do qual derivou
uma queda do eurocentrismo e da suposta desigualdade entre os povos
"civilizados" e os "não-civilizados". Houve também uma
redução na distância entre as classes sociais, pelo menos nos países ocidentais.
Esse progresso foi conquistado sob a
ameaça da Guerra Fria. No momento da queda do Muro de Berlim, começamos a
acreditar que enfim seria realizada a transição da cultura da guerra para a
cultura da paz. No entanto a década que se seguiu não tomou esse rumo.
Testemunhamos a persistência, e até mesmo a ampliação, dos conflitos locais,
quer sejam na África, quer nos Bálcãs. Isso pode ser considerado, ainda, como
um resultado da sobrevivência do passado no presente. No entanto, além da ameaça
nuclear sempre presente, novas sombras apareceram: o progresso tecnológico
agora torna possíveis guerras travadas premindo botões, semelhantes de alguma
forma a um jogo eletrônico.
Sou uma das pessoas que ajudaram a
formular as políticas científicas da União Européia. A ciência une os povos.
Criou uma linguagem universal. Muitas outras disciplinas, como a economia e a
ecologia, também requerem cooperação internacional. Fico, por isso, ainda mais
atônito quando percebo que os governos estão tentando criar um exército europeu
como expressão da unidade da Europa. Um exército contra quem? Onde está o
inimigo? Por que esse crescimento constante nos orçamentos militares, quer na
Europa, quer nos Estados Unidos? Cabe às futuras gerações tomar uma posição
sobre isso. Na nossa era, e isso será cada vez mais verdade no futuro, as
coisas estão mudando a uma velocidade jamais vista. Vou usar um exemplo
científico.
Quarenta anos atrás, o número de
cientistas interessados na física de estado sólido e na tecnologia da
informação não passava de umas poucas centenas. Era uma "flutuação",
quando comparado às ciências como um todo. Hoje, essas disciplinas se tornaram
tão importantes que têm conseqüências decisivas para a história da humanidade.
Cabe às futuras gerações construir uma nova
coerência que incorpore tanto os valores humanos quanto a ciência, algo que
ponha fim às profecias quanto ao "fim da ciência", "fim da
história"ou até quanto ao advento da "pós-humanidade".
Crescimento exponencial foi
registrado no número de pesquisadores envolvidos nesse setor da ciência. É um
fenômeno de proporção sem precedentes, que deixou muito para trás o crescimento
do budismo e do cristianismo. Em minha mensagem às futuras gerações, gostaria de
propor argumentos com o objetivo de lutar contra os sentimentos de resignação
ou impotência. As recentes Ciências da Complexidade negam o determinismo;
insistem na criatividade em todos os níveis da natureza. O futuro não é dado. O
grande historiador francês Fernand Braudel escreveu: "Eventos são
poeira". Isso é verdade? O que é um evento? Uma analogia com
"bifurcações", estudadas na física do não-equilíbrio, surge
imediatamente. Essas bifurcações aparecem em pontos especiais nos quais a
trajetória seguida por um sistema se subdivide em "ramos". Todos os
ramos são possíveis, mas só um deles será seguido. No geral não se vê apenas
uma bifurcação. Elas tendem a surgir em sucessão. Isso significa que até mesmo
nas ciências fundamentais há um elemento temporal, narrativo, e isso constitui
o "fim da certeza", o título do meu último livro. O mundo está em
construção, e todos podemos participar dela.
METÁFORAS
ÚTEIS
Como
escreveu Immanuel Wallerstein: "É possível – possível, mas não certo –
criar ou construir um mundo mais humano e igualitário, melhor ancorado no
racionalismo material". Flutuações do nível microscópico decidem que ramo
emergirá em cada ponto de bifurcação e, portanto, que evento acontecerá. O
apelo às Ciências da Complexidade não significa que estejamos sugerindo que as
ciências humanas sejam "reduzidas" à Física. Nossa empreitada não é
de redução, mas de reconciliação. Conceitos introduzidos das Ciências da
Complexidade podem servir como metáforas muito mais úteis do que o tradicional
apelo a metáforas newtonianas. As Ciências da Complexidade, assim, conduzem a
uma metáfora que pode ser aplicada à sociedade: um evento é a aparição de uma
nova estrutura social depois de uma bifurcação; flutuações são o resultado de
ações individuais.
Todo evento tem uma
"microestrutura". Tomemos um exemplo histórico a Revolução Russa de
1917. O fim do regime czarista poderia ter tomado diferentes formas, e o ramo
seguido resultou de diversos fatores, tais como a falta de previsão do czar, a
impopularidade de sua mulher, a debilidade de Kerensky, a violência de Lênin.
Foi essa microestrutura, essa flutuação, que determinou o desfecho da crise e,
assim, os eventos que a ela se seguiram. Desse ponto de vista, a história é uma
sucessão de bifurcações. Um exemplo fascinante de como isso transcorre é a
transição da era paleolítica para a neolítica, que aconteceu praticamente no
mesmo período em todo o mundo (esse fato é ainda mais surpreendente dada a
longa duração da era paleolítica). A transição parece ter sido uma bifurcação
ligada a uma exploração mais sistemática dos recursos minerais e vegetais.
Muitos ramos emergiram dessa bifurcação: o período neolítico chinês, com sua
visão cósmica, por exemplo, o neolítico egípcio, com sua confiança nos deuses,
ou o ansioso período neolítico do mundo pré-colombiano. Toda bifurcação tem
beneficiários e vítimas. A transição para a era neolítica trouxe a ascensão de
sociedades hierárquicas. A divisão do trabalho implicou em desigualdade. A
escravidão foi estabelecida e continuou a existir até o século XIX. Ainda que o
faraó tivesse uma pirâmide como tumba, seu povo era enterrado em valas comuns.
O século XIX, da mesma forma que o século XX, apresentou uma série de
bifurcações. A cada vez que novos materiais eram descobertos – carvão, petróleo
ou novas formas de energia utilizável –, a sociedade se transformava. Será que
não se poderia dizer que, tomadas como um todo, essas bifurcações conduziram a
uma maior participação da população na cultura, e que de lá por diante as
desigualdades entre as classes sociais nascidas na era neolítica começaram a
diminuir?
HOMEM
E NATUREZA
No geral, bifurcações são, a um só
tempo, um sinal de instabilidade e um sinal de vitalidade em uma dada
sociedade. Elas expressam também o desejo por uma sociedade mais justa. Mesmo
fora das ciências sociais, o Ocidente preserva um espetáculo surpreendente de
bifurcações sucessivas. A música e a arte, por exemplo, mudam a cada 50 anos. O
homem continuamente explora novas possibilidades, concebe utopias que podem
conduzi-lo a uma relação mais harmoniosa entre homem e homem e homem e
natureza. E esses são temas que ressurgem constantemente nas pesquisas de
opinião sobre o caráter do século XXI.
A que ponto chegamos? Estou
convencido de que estamos nos aproximando de uma bifurcação conectada ao
progresso da tecnologia da informação e a tudo que a ela se associa, como a
multimídia, robótica e inteligência artificial. Essa é a "sociedade de
rede", com seus sonhos de aldeia global.
Mas qual será o resultado dessa
bifurcação? Em qual de seus ramos nos encontraremos? A palavra
"globalização" cobre uma grande variedade de situações diferentes? É
possível que os imperadores romanos já estivessem sonhando com globalização,
uma cultura única dominando o mundo. A preservação do pluralismo cultural e o
respeito pelo outro exigirá toda a atenção das gerações futuras. Mas há outros
riscos no horizonte.
Cerca de 12 mil espécies de formigas
são conhecidas hoje. Suas colônias variam de algumas centenas a muitos milhões
de indivíduos. É interessante notar que o comportamento das formigas depende do
tamanho da colônia. Em colônias pequenas, a formiga se comporta de forma
individualista, procurando comida e a levando de volta ao ninho. Quando a colônia
é grande, porém, a situação muda e a coordenação de atividades se torna
essencial.
Estruturas coletivas surgem
espontaneamente, então, como resultado de reações autocatalíticas entre
formigas que produzem trocas de informação medidas quimicamente. Não é
coincidência que nas grandes colônias de formigas ou cupins os insetos
individuais se tornem cegos. O crescimento populacional transfere a iniciativa
do indivíduo para a coletividade.
Por analogia, podemos nos perguntar
qual será o efeito da sociedade da informação sobre nossa criatividade
individual. Há vantagens óbvias nesse tipo de sociedade – basta pensar na
medicina ou na economia. Mas existe informação e desinformação. Como
diferenciá-las? Claramente, isso requer cada vez mais conhecimento e um senso
crítico desenvolvido. O verdadeiro precisa ser distinguido do falso, o possível
do impossível. O desenvolvimento da informação significa que estamos legando
uma tarefa pesada às futuras gerações. Não devemos permitir que surjam novas divisões
resultando da "sociedade de redes" baseada na tecnologia da
informação. Mas é preciso igualmente examinar questões mais fundamentais.
Em sentido geral será que a
bifurcação reduzirá a distância entre os países ricos e os pobres? A globalização
será caracterizada pela paz e democracia ou por violência, aberta ou
disfarçada? Cabe às futuras gerações criar as flutuações que determinarão o
rumo do evento correspondente à chegada da sociedade da informação.
Minha mensagem às futuras gerações,
portanto, é de que os dados não foram lançados e que o caminho a ser percorrido
depois da bifurcação ainda não foi escolhido. Estamos em um período de
flutuação no qual as ações individuais continuam a ser essenciais.
Quanto mais a ciência avança, mais
nos espantamos com ela. Fomos da ideia geocêntrica de um sistema solar para a
heliocêntrica, e de lá para a ideia das galáxias, e, por fim, para a dos
múltiplos universos. Todos já ouviram falar do Big Bang. Para a ciência, não
existe um evento único, e isso conduziu à ideia de que múltiplos universos
podem existir. Por outro lado, o homem é até agora a única criatura viva
consciente do espantoso universo que o criou e que ele, por sua vez, pode
alterar. A condição humana consiste em aprender a lidar com essa ambiguidade.
Minha esperança é de que as gerações futuras aprendam a conviver com o espanto
e com a ambiguidade.
A cada ano, nossos químicos produzem
milhares de novas substâncias, muitas das quais derivadas de produtos naturais
– é um exemplo da criatividade humana no seio da criatividade natural como um
todo. Esse espanto nos leva a respeitar os outros. Ninguém é dono da verdade
absoluta, se é que essa expressão significa alguma coisa. Acredito que Richard
Tarnes esteja certo: "A paixão mais profunda da alma ocidental é
redescobrir a unidade com as raízes de seu ser".
Essa paixão leva à afirmação
prometeica do poder da razão, mas a razão pode também conduzir à alienação, a
uma negação daquilo que dá valor e significado à vida. Cabe às futuras gerações
construir uma nova coerência que incorpore tanto os valores humanos quanto a
ciência, algo que ponha fim às profecias quanto ao "fim da ciência",
"fim da história" ou até quanto ao advento da "pós-humanidade".
Estamos apenas no começo da ciência,
e muito distantes do tempo em que se acreditava possível descrever todo o
universo em termos de algumas poucas leis fundamentais. Encontramos o no
domínio macroscópico que nos cerca e no domínio da astrofísica. Cabe às futuras
gerações construir uma nova ciência que incorpore todos esses aspectos, porque,
por enquanto, a ciência continua em sua infância.
Da mesma forma, o fim da história
poderia ser o fim das bifurcações e a realização das visões de pesadelo de Orwell
ou Huxley quanto a uma sociedade atemporal que perdeu sua memória. Cabe às
futuras gerações manterem-se vigilantes para garantir que isso jamais aconteça.
Um sinal de esperança é o de que o interesse pela natureza e o desejo de
participar da vida cultural jamais foi maior do que hoje. Não precisamos de
nenhum tipo de pós-humanidade. Cabe ao homem tal qual é hoje, com seus
problemas, dores e alegrias, garantir que sobreviva no futuro. A tarefa é
encontrar a estreita via entre a globalização e a preservação do pluralismo
cultural, entre a violência e a política, e entre a cultura da guerra e a da
razão. São responsabilidades pesadas.
Uma carta às gerações futuras é
sempre e necessariamente escrita de uma posição de incerteza, de uma extrapolação
arriscada do passado. No entanto, continuo otimista. O papel dos pilotos
britânicos foi crucial para decidir o desfecho da Segunda Guerra Mundial. Foi,
para repetir uma palavra que usei com freqüência nesse texto, uma
"flutuação". Confio em que flutuações como essa surgirão sempre, para
que possamos navegar seguros entre os perigos que hoje percebemos. É com essa
nota de otimismo que eu gostaria de encerrar minha mensagem.
ILYA PRIGOGINE (1917-2003), Nobel de Química em 1977.
Carta publicada na Folha de São Paulo, Caderno Mais, p. 4 a 7. Edição: Nacional, 30 de Janeiro de 2000. Extraída do Livro “ILYA PRIGOGINE: Ciência, Razão e Paixão” organizada e traduzida por Edgard de Assis Carvalho e Maria da Conceição de Almeida.
Ilustração inspirada a partir da foto de capa do livro "La Nueva Alianza", coleção dirigida por J. M. Sánchez Ros, 1977.